07 março 2006

Porquê tanto chinfrim?

Tanto é o disparate que se tem dito e escrito sobre a busca ao 24 H que me dei ao enfadonho trabalho de transcrever as normas jurídicas relacionadas com tal questão.
Tenho a certeza de que muitos dos que falam sobre este assunto nunca as leram.

Então, aí vai:

- A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ..., à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artº 26º nº 1 da CRP)
- A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias (artº 26º nº2 da CRP)

- É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo ciminal (artº 34º nº 4 da CRP)


- É garantida a liberdade de imprensa (artº 38º nº 1 da CRP)
- A liberdade de imprensa implica o direito dos jornalistas, nos termos da lei, ao acesso às fontes de informação e à protecção da indepedência e do sigilo profissional... (artº 38º nº 2 da CRP)

- Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artº 202º nº 1 da CRP)
- Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados (artº 202º nº 2 da CRP)

- Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, ..., exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (artº 219º nº 1 da CRP)

- A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses cosntitucionalmente protegidos (artº 18º nº 2 da CRP)


- O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artº 262º nº 1 do CPP)
- Ressalvadas as excepções previstas neste Código, a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito (artº 262º nº 2 do CPP)


- Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista (artº 174º nº 1 do CPP)
- Quando houver indícios de que os objectos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca (artº 174º nº 2 do CPP)
- As revistas e buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência (artº 174º nº 3 do CPP)

- São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, ou que constituírem o seu produto, lucro preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir de prova (artº 178º nº 1 do CPP)


- Os ministros de religião ou confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo (artº 135º nº 1 do CPP)
- Havendo dúvidas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao Tribunal que ordene, a prestação do depoimento (artº 135º nº 2 do CPP)
- O Tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ..., pode decidir da prestação do testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante (artº 135º nº 3 do CPP)
- Nos casos previstos nos nºs. 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do Tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável (artº 135º nº 5 do CPP)
- As pessoas indicadas nos artigos 135º a 137º apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional ou de funcionário ou segredo de Estado (artº 182º nº 1 do CPP)
- Se a recusa se fundar em segredo profissional ou de de funcionário, é correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 135º nº 2 e 3 e 136º nº 2 (artº 182º nº 2 do CPP)

- Sem prejuízo do disposto na lei processual penal, os jornalistas não são obrigados a revelar as suas fontes de informação, não sendo o seu silêncio passível de qualquer sanção directa ou indirecta (artº 11º nº 1 do Estatuto do Jornalista)
- Os jornalistas não podem ser dessapossados do material utilizado ou obrigados a exibir os elementos recolhidos no exercício da profissão, salvo por mandado judicial e nos demais casos previstos na lei (artº 11º nº 2 do Estatuto do Jornalista)

- Quem, sem a devida autorização, por qualquer modo, aceder a dados pessoais cujo acesso lhe está vedado, é punido com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias (artº 43º nº 2 da Lei 67/98 de 26.10 - Lei da Protecção de Dados Pessoais)
- A pena é agravada para o dobro dos seus limites quando o acesso:
a) For conseguido através de violação de regras técnicas de segurança;
b) Tiver possibilitado ao agente ou a terceiros o conhecimento de dados pessoais;
c) Tiver proporcionado ao agente ou a terceiros, benefício ou vantagem patrimonial (artº 43º nº 2 da LPDP)



Este maçador arrazoado todo para concluir o seguinte:
1. Existe o direito do jornalista proteger as suas fontes;
2. Esse direito não é absoluto e tem de coexistir com outras normas do ordenamento jurídico, constitucionais e infra-constitucionais;
3. Pode, pois, esse direito ser condicionado ou mesmo sacrificado, à semelhança do que acontece com outros "segredos", até com maior protecção (ver post anterior), como é o caso do segredo profissional do advogado e do médico;
4. No processo penal, e com cobertura constituional, e porque se investiga a prática de crimes de natureza pública, há meios próprios para levantar esses segredos.


Porquê, portanto, tanto chinfrim neste caso?
Quer a opinião publicada que o jornalismo português seja um caso à parte, sem limites para a liberdade de imprensa e para o segredo profissional?
Em nome de quem?
E de quê?
Com que legitimidade democrática?
Para proteger que interesses?

Boa noite.